A lenta destruição das estátuas gigantes na Ilha de Páscoa: 'Um dia voltarão ao oceano'
14/07/2025
(Foto: Reprodução) As famosas estátuas da Ilha de Páscoa estão desmoronando no mar, forçando moradores a tomar decisões urgentes sobre como proteger esse patrimônio Os moais são feitos de tufo, uma rocha vulcânica composta principalmente por cinzas compactadas, que são facilmente erodidas pelas chuvas
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Em uma ilha remota do Pacífico, numa antiga pedreira no topo de um vulcão, Maria Tuki passa por figuras inacabadas esculpidas em rocha.
Os rostos rústicos dessas figuras carregam sobrancelhas franzidas e narizes inclinados, que ficaram famosos no mundo todo. Essa é a terra dos moais, as icônicas estátuas humanas de Rapa Nui, também conhecida como Ilha de Páscoa, uma ilha isolada de 163,7 km² e que fica a 3.500 quilômetros da costa do Chile.
Antes da minha visita, eu esperava ver apenas alguns desses rostos famosos em pontos turísticos específicos. Mas a quantidade de moais é de tirar o fôlego. Alguns estão espalhados ao longo das estradas, à beira da costa e nas encostas dos morros. Juntos, eles formam uma lembrança física e concreta da história ancestral dessa terra.
Séculos atrás, os ancestrais de Tuki esculpiram e entalharam centenas de monolitos como os que hoje estão aqui. Há evidências dessa atividade por todo lado, tanto na pedreira, onde alguns ainda estão profundamente incrustrados na montanha, quanto na terra ao redor, onde estátuas finalizadas foram abandonadas, formando caminhos até a beira da ilha.
Acredita-se que grupos de trabalhadores às vezes perdiam o controle ao transportar as estátuas para as plataformas de pedra espalhadas pela costa.
À primeira vista, os imponentes moais, com suas expressões sérias, parecem resistentes. Mas eles são feitos de tufo, uma rocha vulcânica composta principalmente por cinzas compactadas. Esse tipo de pedra é porosa e macia. O vento e a chuva não perdoam.
De perto, os rostos envelhecidos dos moais estão cheios de sinais de erosão e manchas. Eles estão gradualmente se desfazendo em pó. Tuki, que trabalha na indústria de turismo em Rapa Nui, tem assistido essas figuras impressionantes desaparecerem aos poucos.
"Meu pai me disse: 'um dia os moais retornarão para o oceano'."
O pai de Tuki, que morreu em 2020, era um renomado escultor contemporâneo de moais.
Mais de 90% dos monolitos ainda de pé estão posicionados ao longo da costa
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As estátuas originais, a maioria delas esculpidas entre 1100 e 1600 d.C, têm sido alvo de esforços de conservação, já que a erosão — acelerada pelas mudanças climáticas — ameaça destruí-las.
Líderes comunitários na Ilha de Páscoa estão procurando formas de monitorar e mitigar esses danos, tentando de tudo: desde tratamentos químicos até o uso de drones para escaneamento 3D das estátuas, antes que elas desapareçam.
Todas as opções estão sendo consideradas enquanto a comunidade tenta lidar com essa rápida transformação de seu patrimônio — seja realocando as estátuas para locais mais seguros, seja permitindo que elas sucumbam, como "parte do seu ciclo de vida", argumentam alguns.
Há aproximadamente mil estátuas na ilha em vários estágios de finalização, com cerca de 200 posicionadas em suas plataformas finais, conhecidas como ahu. A maioria dessas plataformas fica ao longo da costa da ilha, de frente para o mar.
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A criação e a deterioração dos moais
Os moais foram criados pelas primeiras comunidades de povos polinésios que viveram na ilha para representar os ancestrais e a família do chefe Hotu Matu'a, que acredita ter sido o primeiro a ocupar Rapa Nui — após chegar de canoa vindo de uma ilha da Polinésia Oriental.
Em algum momento entre o fim do século 18 e início do século 19, as estátuas foram misteriosamente derrubadas, provavelmente porque um novo movimento religioso ganhou força na ilha, ou possivelmente por causa de algum conflito. Historiadores ainda não encontraram uma resposta definitiva para essa questão.
Por conta da história impressionante dessas enormes estátuas de pedra, o Parque Nacional de Rapa Nui foi declarado Patrimônio Mundial da Unesco, em 1995.
Ainda assim, os moais não são estátuas perfeitas e intocadas, protegidas do ambiente ao redor. Na verdade, elas começaram a se deteriorar assim que foram esculpidas, de acordo com o livro Death of a Moai (Morte de um Moai, na tradução livre para o português) da historiadora Elena Charola, publicado em 1997.
Segundo Charola, o tufo foi submetido a muito estresse ao ser cortado e talhado na pedreira, depois desgastado pelas cordas e arranhado durante a longa jornada morro abaixo.
Desde o dia em que foram erguidos, o sol, o vento, a chuva e as variações de temperaturas também passaram a desgastar os moais.
Quando a umidade vinda da maresia evapora, o sal cristaliza-se dentro do tufo vulcânico macio e se expande, fazendo com que a estátua descasque ou lasque, criando rachaduras finas e cavidades em formato de favos de mel. Eu vi líquens crescendo na superfície de muitas estátuas, com a aparência de erupções concêntricas.
Os animais também interferem nos moais. Cavalos e gado acabam se coçando nos monolitos enquanto os pássaros cravam as garras no tufo e depositam excrementos tóxicos, o que erode ainda mais o material. Em 2020, um caminhão acidentalmente colidiu com uma das estátuas.
Os moais atraem mais de 100 mil visitantes por ano para a Ilha de Páscoa
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O mais preocupante, no entanto, é que a erosão dos moais parece ter aumentado bastante nas últimas décadas, segundo Daniela Meza Marchant, conservadora-chefe da comunidade indígena Ma'u Henua, que administra o Parque Nacional de Rapa Nui.
Ela aponta que as imagens e registros do século passado mostram que as alterações aumentaram nos últimos 50 anos comparado aos 50 anteriores.
Na verdade, de acordo com um relatório da Unesco de 2016, os moais da Ilha de Páscoa estão entre os patrimônios mais afetados pelas mudanças climáticas no mundo todo.
Ao longo das últimas décadas, as chuvas na Ilha de Páscoa diminuíram drasticamente, se tornando mais esporádicas e também mais intensas, atingindo os moais de forma mais agressiva do que antes.
A ilha já tem pouca cobertura de árvores, mas as secas frequentes secaram as reservas de água doce e aumentaram o risco de queimadas.
Um incêndio em outubro de 2022 queimou e rachou cerca de 80 moais em Rano Raraku, a cratera vulcânica que abriga a famosa pedreira onde muitos monolitos foram esculpidos. Os danos foram "irreparáveis, com consequências além do que se pode ver a olho nu", disseram as autoridades na época.
O aumento do nível do mar e de eventos extremos de ondas também estão erodindo a ilha. Esse é um dos perigos mais iminentes para os moais, segundo o relatório da Unesco, já que mais de 90% dos monolitos ainda de pé estão posicionados ao longo da costa.
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Tentativas de salvar os moais
As pessoas já tentaram salvar os moais antes. Durante duas décadas, a partir de 1970, o arqueólogo americano William Mulloy realizou diversos trabalhos de restauração na ilha, reerguendo as estátuas e reconstruindo plataformas fragmentadas que haviam sido derrubadas em massa no início dos anos 1800.
Em 1990, um sítio chamado Tongariki, que tinha sido varrido por um tsunami durante a década de 60, teve seus moais reerguidos por arqueólogos locais.
Mais recentemente, em 2003, um projeto da Unesco financiado pelo Japão aplicou um agente químico nas estátuas de Tongariki para impermeabilizá-las, com objetivo de tornar o tufo mais resistente à maresia.
Contudo, o tratamento, além de caro e delicado, deve ser reaplicado a cada 5 ou 10 anos, o que representa um peso para os poucos recursos locais disponíveis. De acordo com a revista local MoeVarua Rapa Nui, "vários outros locais aguardam essa intervenção preventiva".
Alguns esforços de conservação, no entanto, deram errado. Em 1986, pesquisadores do Museu de História Natural Senckenberg, na Alemanha, fizeram moldes de silicone das estátuas para criar réplicas, mas, de forma inadequada, acabaram arrancando uma camada superficial do tufo dos monolitos, erodindo as estátuas ainda mais.
"A cor das pedras foi completamenta alterada", observa um estudo sobre o incidente.
Hoje, a preservação dos moais vem melhorando constantemente, com ajuda de novas tecnologias e, ocasionalmente, de recursos vindos de organizações internacionais.
Para tentar conter os impactos do aumento do nível do mar, em 2018, arqueólogos locais reforçaram duas estruturas parecidas com muros de contenção em um sítio moai chamado Runga Va'e, para evitar que as ondas avançassem sobre a plataforma ahu.
Eles também reconstruíram partes da plataforma que havia desmoronado com o tempo e a reforçaram. A equipe usou drones para fazer escaneamento 3D da área, o que permitiu planejar o trabalho de restauração e conservação sem a necessidade de escavações grandes e invasivas.
Há aproximadamente 1.000 estátuas na ilha em vários estágios de finalização
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A organização sem fins lucrativos CyArk, com sede nos EUA, também tem ajudado o povo Rapa Nui a criar modelos 3D mais precisos de todos os ahu e moais da ilha usando drones, câmeras e scanners a laser.
"Você tira milhares de fotos sobrepostas e, a partir delas, cria um modelo 3D com base nos pontos em comum entre as diferentes imagens", explica Kacey Hadick, gerente do programa de patrimônio da CyArk, que trabalha na ilha desde 2017.
"Isso pode ajudar a monitorar mudanças ao longo do tempo, taxas de erosão, além de fornecer um registro muito preciso do estado atual das coisas."
Em 2023, a subsecretária de patrimônio cultural da Unesco, Carolina Pérez Dattari, destinou US$ 97 mil (cerca de R$ 539 mil na conversão atual) para avaliação de danos, reparos e elaboração de planos de gestão de risco para os moais que foram queimados pelos incêndios em 2022.
Depois de uma análise inicial, em maio de 2025, a equipe da Ma'u Henua iniciou o trabalho físico de conservação para esse projeto em cinco dos moais mais afetados pelo fogo, segundo Ariki Tepano Martin, presidente da Ma'u Henua.
A conservadora-chefe Meza Marchant montou coberturas para proteger os moais das condições climáticas e reduzir os níveis de umidade. Agora, ela está tratando os prejuízos causados pelas queimadas com uma solução química desenvolvida especialmente para os moais por restauradores de pedra da Universidade de Florença, que trabalham com o povo Rapa Nui desde 2009.
Os especialistas italianos já testaram a solução em fragmentos menores de pedras queimadas no laboratório: o líquido age como uma lavagem suave, mas eficaz, removendo a fuligem preta deixada pelas chamas.
Meza Marchant usará outros tratamentos químicos semelhantes aos desenvolvidos pelos italianos para fortalecer as rochas, eliminar os líquens com um tratamento tipo antibiótico e torná-las repelente à água, protegendo da maresia e da chuva — de forma parecida com o revestimento usado em Tongariki, segundo Tepano Martin.
Um monitoramento constante está sendo feito para verificar se o tratamento está dando os resultados esperados, na esperança de desacelerar a deterioração contínua dos moais.
Os altos impostos de importação para esses químicos especializados da Itália, contudo, tornaram a operação mais difícil do que o previsto, conta Tepano Martin.
Oito anos atrás, Meza Marchant usava algumas dessas técnicas italianas para restaurar o Ahu Huri a Urenga, um raro moai com quatro mãos que é um dos poucos posicionados sobre uma plataforma na parte interior da ilha.
A estátua —que está alinhada com o solstício de inverno e foi usada para observações astronômicas — foi reerguida pelos arqueólogos nos anos 1970 após as derrubadas do século 18, mas acabou não sofrendo erosão com o tempo.
Depois que os cinco moais forem restaurados, o grupo Ma'i Henua tem como objetivo usá-los como modelo para futuros projetos de conservação e restauração dos monolitos da ilha. Até agora, "cada buraco, cada pequena intervenção, demandou uma permissão especial", disse Tepano Martin.
"O projeto com esses cinco moais nos ajudará a criar um protocolo de conservação dos moais para que não precisemos mais pedir permissão moai por moai."
Ainda assim, eles só têm financiamento para esses primeiros cinco moais.
Cientes das ameaças ambientais, Tuki e seu marido, que também trabalha com turismo, me disse que alguns moradores acreditam que os moais seriam melhores preservados em museus.
Um novo museu está sendo atualmente construído na ilha, e os planos indicam que ele provavelmente vai abrigar e proteger algumas das estátuas.
Preservar ou não os moais
À medida que subimos a colina vulcânica de uma vila chamada Orongo, eles me mostram alguns dos artefatos que mais sofreram erosão e foram destruídos: hieróglifos cerimoniais gravados em grandes lajes de pedra ao redor da vila.
Um moai especial costumava ficar no topo dessa colina: a estátua Hoa Hakananai'a, que tem hieróglifos únicos esculpidos nas costas.
A estátua foi levada da Ilha de Páscoa pelos britânicos em 1868 e está em exibição no Museu Britânico, em Londres.
Considerando a fragilidade desses hieróglifos em particular, Tuki e o marido dizem que alguns moradores acreditam que a estátua está mais segura em Londres, protegida por câmeras de segurança, uma redoma de vidro e medidores de umidade.
Segundo o casal, pode-se argumentar que Hoa Hakananai'a também funciona como uma embaixadora da cultura Rapa Nui para centenas de milhares de pessoas que talvez consigam visitar o museu, mas não a Ilha de Páscoa. Muitos moradores, contudo, defendem que a estátua deveria ser repatriada.
No entanto, para alguns, a destruição dos monolitos é simplesmente parte do ciclo de vida dos moais.
"Muitos acreditam que os moais devem, como estão, ir para o solo e desaparecer. Deixem os moais voltarem para sua hanua, sua terra, deixem eles retornarem para casa", disse Dale Simpson Jr, um arqueólogo da Universidade Illinois Urbana-Champaign, nos Estados Unidos, que estuda ferrramentas de esculturas polinésias.
Ele observa que muitas comunidades em todo o Pacífico destroem artefatos e objetos cerimoniais propositalmente. "Tudo tem um ciclo de vida, com início e fim. Podemos enxergar como destruição, mas é o ciclo natural de vida de uma estátua."
Alguns moradores da Ilha de Páscoa discordam veementemente. Para eles, os moais representam uma base fundamental do patrimônio cultural e uma obra-prima insubstituível da criatividade humana, tanto científica quanto histórica. Essas estátuas também atraem mais de 100 mil visitantes por ano para a Ilha de Páscoa, onde o turismo se tornou o principal motor da economia.
"A preservação das estátuas não é apenas desejável, é absolutamente imperativa", diz o arqueólogo Claudio Cristino-Ferrando da Universidade do Chile, que mora em Rapa Nui.
Ele acredita que assistir passivamente à deterioração desses trabalhos monumentais é "totalmente inadmissível", e a ideia de que eles "retornarão para o nada" é equivocada.
"Esse tipo de pensamento contradiz não apenas nosso dever como guardiões do patrimônio cultural da humanidade, mas também o próprio sentido original da tradição da Ilha de Páscoa", diz ele — de que os moais deveriam servir como testemunhas da chegada dos ancestrais polinésios à ilha.
Em meio a esse debate, o grupo de Ma'u Henua busca adotar uma abordagem multifacetada para garantir as melhores chances de manter as estátuas moai na ilha, combinando a conservação com apoio à criação contínua de novos artefatos.
Paralelamente ao trabalho de preservação, Tepano Martin espera desenvolver programas que incentivem artesãos locais a continuar produzindo moais e a passar as técnicas tradicionais de escultura em tufo às novas gerações.
Alguns dos moais esculpidos pelo pai de Tuki já podem ser vistos em pé, com mais de dois metros de altura, do lado de fora do aeroporto da ilha. Eles também foram enviados para representar o povo rapanui em Santiago e Valparaíso, no Chile, e para Espanha e Japão.
"Não é apenas sobre proteger os moais, nós estamos protegendo os moais para garantir a preservação do nosso povo nesta ilha", diz Tepano Martin.
"Nossa cultura continua. Ela ainda está viva, e podemos preservar a tradição dos nossos ancestrais criando algo novo."
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site da BBC Future.
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